Toda a atividade empresarial realizada por intermédio de uma pessoa jurídica requer algum tipo de financiamento de suas atividades. Em diversas situações, esse financiamento (ou capitalização) da sociedade empresarial tem origem em seus próprios sócios, que disponibilizam seus próprios recursos a ela por meio de operações privadas, entre as quais se destacam o mútuo e o aporte de capital (capital social).
O mútuo, como dispõe a legislação vigente, comporta a pactuação de uma remuneração em favor dos credores, de forma que estes podem ter o capital emprestado à sociedade remunerado por meio da cobrança de juros. O capital social, por sua vez, porquanto represente recursos dos sócios em poder da sociedade, não oferecia qualquer tipo de remuneração a estes que não os próprios dividendos, condicionados à lucratividade da atividade empresarial e, consequentemente, de recebimento incerto.
Em 1995, na esteira da desindexação da economia brasileira e fim da correção monetária do balanço, e buscando tornar mais atrativa a alocação de recursos dos sócios na atividade das sociedades empresariais, a Lei nº 9.249 criou a figura dos juros sobre o capital próprio (“JCP”), “permitindo a dedução dos juros pagos aos acionistas, até o limite da variação da Taxa de Juros de Longo prazo – TJLP”[1].
Consoante a legislação citada, os JCP são calculados sobre as contas de patrimônio líquido (exclusivamente capital social, reservas de capital, reservas de lucros, ações em tesouraria e prejuízos acumulados), sendo que sua dedutibilidade, para fins de apuração do lucro real, fica limitada ao maior[2] dos seguintes limites: 50% do dos lucros (antes da dedução dos juros) ou 50% do somatório dos lucros acumulados e reservas de lucros.
Nesse contexto, a Lei nº 9.249 não estabeleceu, de forma explícita, o período específico para o pagamento dos JCP sócios ou acionistas das sociedades empresariais, podendo se concluir que, tendo natureza de uma despesa financeira, a deliberação do seu pagamento poderia ocorrer em períodos subseqüentes aos quais seu cálculo se baseia (pagamento retroativo).
Ocorre que a Receita Federal tem, continuamente, feito oposição a esse entendimento, concluindo que a falta de deliberação de pagamento dos JCP em exercícios anteriores acarretaria a perda do direito de deduzir esses valores na apuração do lucro real. Nessa linha, a Instrução Normativa nº 1700/2017 dispõe, em seu artigo 75, § 4º, que “a dedução dos juros sobre o capital próprio só poderá ser efetuada no ano-calendário a que se referem os limites de que tratam o caput e o inciso I do § 2”.
No mesmo sentido, ao analisar o assunto, a Solução de Consulta Cosit nº 329/2014 assim decidiu:
“ASSUNTO: IMPOSTO SOBRE A RENDA DE PESSOA JURÍDICA – IRPJ. JUROS REMUNERATÓRIOS DO CAPITAL PRÓPRIO. DEDUTIBILIDADE. LIMITE TEMPORAL. REGIME DE COMPETÊNCIA. PATRIMÔNIO LÍQUIDO. EXERCÍCIOS ANTERIORES. IMPOSSIBILIDADE.
Para efeito de apuração do lucro real, é vedada a dedução de juros, a título de remuneração do capital próprio, que tome como base de referência contas do patrimônio líquido relativas a exercícios anteriores ao do seu efetivo reconhecimento como despesa, por desatender ao regime de competência.”
O principal argumento utilizado pelas autoridades da Receita Federal para concluir pela indedutibilidade dos JCP retroativos diz respeito à inobservância do regime de competência: por ser uma despesa, os JCP só poderiam ser deduzidos quando da sua deliberação, e com base apenas nos elementos de cálculo próprios do período de reconhecimento da despesa. Daí que, segundo a Receita Federal, os JCP só são passíveis de dedução como despesa se incidentes sobre o patrimônio líquido do mesmo exercício no qual se fará a dedução, não podendo conter, em seu cálculo, elementos verificados em períodos já encerrados e, logo, estranhos ao período de sua dedução.
Alega, ainda, que, ao contrário dos dividendos, o pagamento dos JCP representa uma faculdade conferida à sociedade que, não sendo exercida até o encerramento do período, estaria preclusa para tal período (limite temporal do direito de deliberar o pagamento dos JCP), não podendo mais se cogitar no pagamento dos juros sobre as contas patrimoniais desse período.
Pelo lado dos contribuintes, argumenta-se, em primeiro lugar, que a limitação temporal não encontra previsão na Lei nº 9.249, razão pela qual não poderia restringir a dedução dos JCP. Mais do que isso, que as condições legais para a dedução dos JCP são o respeito à base de cálculo, a existência de lucros ou reservas de lucros em ao menos 2 vezes o montante dos JCP e a retenção do IRF, pelo que não faria o menor sentido a empresa observar tais requisitos e ser impedida da dedução dos juros por faze-lo em exercício posterior aos elementos da base de cálculo.
Além disso, argumentam os contribuintes que: (i) a correta interpretação do regime competência, para fins de dedução dos JCP, não envolve o seu período de cálculo, mas se refere ao período em que ocorre a deliberação pelo seu pagamento e; (ii) a ausência de manifestação social acerca do pagamento dos JCP em determinado período não implica na sua renúncia, dado que não há autorização legal que conduza a extinção desse direito, sendo vedado ao intérprete concluir que a omissão conduz a extinção do direito.
Vale lembrar que, no distante ano de 2009, a Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”), ao julgar o Recurso Especial nº 1.086.752/PR, concluiu que a legislação permite que a dedução dos JCP ocorra em ano-calendário futuro, quando efetivamente ocorrer a realização do pagamento, não limitando esse direito ao exercício-financeiro em que realizado o lucro da empresa. Essa decisão, embora importante, não foi julgada sob o rito de recurso repetitivo e não pode ser considerada consolidada no âmbito judicial.
Apesar dessa decisão, julgamentos posteriores do CARF mantiveram o entendimento da Receita Federal acerca de indedutibilidade dos JCP de exercícios anteriores, baseando-se na premissa de que não havendo deliberação societária quanto ao pagamento de JCP no respectivo ano-calendário, estaria caracterizada uma suposta renúncia à faculdade de pagar (e deduzir) os JCP, o que impossibilitaria reconhecimento da despesa em exercícios posteriores.
De todo modo, recentemente, no dia 3 de setembro de 2021, a 1ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais julgou o primeiro caso em que decidiu pela dedutibilidade dos JCP de exercício anterior. Com efeito, no julgamento do processo administrativo nº 16327.001202/2009-72 (Acórdão 9101-005.757), prevaleceu o voto favorável aos contribuintes em razão do empate nos votos.
Nesse caso, o voto vencedor concluiu que a legislação fiscal impôs apenas requisitos contábeis, societários e quantitativos à dedução dos JCP, sem impor qualquer tipo de limitação temporal quanto aos períodos sobre os quais se pode deliberar pelo pagamento e creditamento dos JCP.
O mesmo resultado foi adotado em 13 de julho de 2022, no julgamento do processo 10980.724267/2016-29, também pela 1ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais e também com resultado de empate em favor do contribuinte.
Com isso, o cenário atual da CSRF, em boa parte devido ao fim do voto de qualidade, é bastante favorável à aceitação da dedução retroativa dos JCP, sem limitação temporal quanto ao período de deliberação envolvendo o pagamento desses valores. No entanto, alguns aspectos relacionados a essa dedutibilidade retroativa possivelmente ainda venham a ser debatidos, como a aplicação de prazo decadencial de 5 anos e a situação de empresas que estavam no lucro presumido (ou com prejuízos fiscais) no exercício em relação ao qual os JCP foram calculados.
Como conclusão, entendemos que, de um modo geral, a discussão envolvendo o pagamento de JCP retroativo possui boas chances de êxito nas esferas administrativa e judicial, constituindo importante oportunidade tributária para os contribuintes.
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Estevão Gross – GT Lawyers
[1] Exposição de motivos – PL 913/1995.
[2] Instrução Normativa 1700, art 75, § 2.