O Supremo Tribunal Federal pacificou a discussão envolvendo a terceirização das atividades-fim das empresas (STF, ADPF 324 e RE 958.252 – tema 725[1] sob repercussão geral), isto é, a contratação de empresa prestadora de serviços para realizar uma atividade essencial para a operação, concluindo pela legalidade dessa prática. Desde então, inúmeras decisões têm sido proferidas por esse Tribunal admitindo (e confirmando) a legalidade da contratação de outras pessoas jurídicas para a prestação dos mais diversos tipos de atividade, relacionadas ou não à atividade-fim da empresa contratante.
Nesse contexto, embora a denominada “pejotização” (prestação de serviços pessoais por meio de pessoas jurídicas detidas pelo próprio prestador dos serviços) tenha sido aceita em diversas decisões da Corte Suprema, inclusive com a cassação de acórdãos proferidos por TRTs e pela própria Secretaria da Receita Federal que reconheciam o vínculo empregatício, não se pode afirmar que essa forma de contratação esteja admitida de forma ampla e irrestrita, na medida em que ainda surgem decisões que a afastam ante a existência de elementos fáticos capazes de evidenciar o vínculo empregatício (vide, como exemplo, a recente Rcl 69.970/GO, de 22/08/2024).
Em que pese algumas incertezas acerca da prevalência da “pejotização” sobre a contratação com vínculo empregatício, notadamente na jurisprudência do STF, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais tem analisado autuações envolvendo o tema – inclusive à luz do recente entendimento do STF no tema 725.
De fato, não são raras as autuações fiscais envolvendo a “pejotização”, com a desconsideração dessa modalidade de contratação e seu enquadramento como relação de emprego para efeitos de cobrança as contribuições previdenciárias sobre a folha de salários. Nesse sentido, nos termos do artigo 229, §2º do Regulamento da Previdência Social (Decreto 3.048/99), a autoridade fiscal pode desconsiderar o vínculo contratual do segurado contratado e enquadrá-lo como empregado se verificar que estão presentes as condições que caracterizem a relação de emprego[2].Portanto, na prática, a autoridade fiscal dispõe de poderes para avaliar as condições de trabalho dos segurados e, se estiverem presentes os requisitos fáticos caracterizadores do vínculo laboral, podem reenquadrar a situação para a cobrança das contribuições previdenciárias, em autêntica superação da forma contratual pela essência/realidade factual do vínculo.
Dito isso, de uma forma geral, o CARF tem entendido que a “pejotização” deve, a princípio, prevalecer, em respeito ao direito à livre iniciativa e à livre contratação,exceto nos casos em que fique minuciosamente comprovada pelas autoridades fiscais a presença de relações de emprego, em especial do elemento da subordinação, conforme evidenciam as seguintes decisões:
“A prestação de serviços pessoais por pessoa jurídica encontra limitação quando presentes os requisitos da relação de emprego. Estando presentes as características previstas no artigo 3º da CLT, a Fiscalização tem o poder/dever de lançar as contribuições previdenciárias incidentes sobre a relação de emprego comprovada. Assim, imprescindível a caracterização da relação empregatícia para a constituição do crédito tributário.” (CARF, Acórdão 2401-010.174, 2ª Seção, j. 13/09/2022)
“É necessário que fique demonstrada a ocorrência de relação de emprego em relação a tomadora do serviço. A terceirização da atividade fim não é suficiente para demonstrar a ‘Pejotização’.” (CARF, Acórdão 2401-011.244 – 2ª Seção, j. 13/07/2023)
“A autoridade lançadora constatando os requisitos determinados na alínea ‘a’, do inciso I, do artigo 9º, do Decreto nº 3.048, de 06 de maio de 1999, que aprova o Regulamento da Previdência Social RPS, que elementos constituintes da relação empregatícia entre o suposto ‘tomador de serviços’ e ‘prestador de serviços’, poderá o Auditor Fiscal desconsiderar a personalidade jurídica da empresa prestadora de serviços, consoante o artigo 229, § 2º, do Regulamento da Previdência Social – RPS.
Contudo, quando não se verifica os elementos caraterizadores do vínculo empregatício, para fins previdenciários, deve ser afastada a exigência fiscal.” (CARF, Acórdão 2301-011.040 – 2ª Seção, j. 07/027/2024)
Ou seja, o CARF tem prestigiado a forma jurídica das contratações via “pejotização”,exceto quando, nos termos do art. 229 do Decreto 3.048/99, forem reunidos elementos de prova capazes de evidenciar, de forma clara, a existência de vínculo empregatício.
Esse posicionamento deve prevalecer mesmo nos casos em que se verifica a demissão/rescisão do contrato de trabalho de empregados para que o empregador os contrate, no momento seguinte, como pessoas jurídicas. Mesmo nesses casos, o reenquadramento da relação jurídica para vínculo empregatício depende essencialmente da presença e comprovação dos elementos caracterizadores da relação empregatícia, não bastando a evidenciação da demissão de empregados seguida pela sua recontratação via “PJ”, consoante já decidido pelo CARF:
“Não foi encontrado nos autos nenhum elemento que pudesse justificar a mudança do regime de contratação dos obreiros que laboravam para a consecução dos objetivos (atividade-fim) da companhia. Não é razoável e fere o senso comum o fato de que uma mesma pessoa possa ser empregado de uma empresa em um dia, e no dia imediatamente seguinte possa ser um empresário, continuando a realizar o trabalho nas dependências do antigo empregador, sem qualquer subordinação ao poder diretivo da empresa.
Entretanto, mesmo com todos os indícios convergentes e concordantes, que segundo a melhor doutrina é um meio de prova, cairia por terra as constatações da autoridade fiscal, se essa não tivesse se desincumbido do dever de comprovar a presença dos requisitos da relação de emprego.” (Acórdão 2201-009.374 – 2ª Seção, j. 08/11/2021)
Assim, mesmo diante da ausência de propósito negocial/senso comum na estruturação da “pejotição”, o CARF tem pautado suas decisões envolvendo a desqualificação da “pejotização” e reenquadramento para vínculo empregatício exclusivamente nos elementos de prova produzidos pelos auditores fiscais: se tais elementos foram minuciosamente comprovados, a desconsideração da “PJ” pode ser aplicada; se tais elementos não forem comprovados ou estiverem apenas mencionados, de forma genérica, na autuação, a “pejotização” deve ser respeitada.
Por fim, ainda é preciso aguardar a evolução da discussão no STF, a fim de que se tenha uma percepção mais clara e consolidada acerca da visão da Corte Suprema emrelação aos limites da “pejotização”.
Ficamos à disposição para esclarecimentos adicionais sobre a matéria.
Artigo preparado por Estevão Gross, sócio de GTLawyers. Para mais informações favor contatar o telefone 11.3504.7618 ou o e-mailegross@gtlawyers.com.br.
[1] “É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante”
[2] “§ 2º Se o Auditor Fiscal da Previdência Social constatar que o segurado contratado como contribuinte individual, trabalhador avulso, ou sob qualquer outra denominação, preenche as condições referidas no inciso I do caput do art. 9º, deverá desconsiderar o vínculo pactuado e efetuar o enquadramento como segurado empregado.”